As Primeiras Traduções Bíblicas para as Línguas Modernas: História, Perseguições e o Surgimento das Sociedades Bíblicas




A Bíblia, O Livro de Deus, é uma das obras mais traduzidas na história da humanidade. No entanto, a transição da Bíblia das línguas antigas—como o hebraico, aramaico e grego—para as línguas vernáculas modernas foi um processo longo, doloroso e frequentemente marcado por resistência feroz da Igreja Católica Romana. No presente artigo abordaremos em detalhes a evolução das primeiras traduções bíblicas para as línguas modernas, a reação da Igreja Romana a essas traduções, as perseguições sofridas pelos tradutores e o surgimento das primeiras sociedades bíblicas, que desempenharam um papel crucial na distribuição da Palavra de Deus para as massas.

O Contexto Histórico das Primeiras Traduções

Durante a maior parte da Idade Média, a Bíblia estava disponível apenas em latim, especificamente na versão conhecida como Vulgata, traduzida por São Jerônimo no final do século IV. Esta tradução era acessível apenas ao clero e à elite educada, enquanto a vasta maioria da população cristã da Europa Ocidental permanecia analfabeta e dependente da Igreja para o conhecimento das Escrituras.

As primeiras tentativas significativas de traduzir a Bíblia para línguas vernáculas começaram a surgir no final da Idade Média e no início da Renascença. Uma das primeiras figuras a destacar-se nesse contexto foi John Wycliffe, um teólogo inglês do século XIV. Wycliffe acreditava firmemente que todos os cristãos deveriam ter acesso direto à Bíblia em sua própria língua, e assim iniciou a tradução da Bíblia para o inglês por volta de 1382. Sua versão, baseada na Vulgata Latina, foi a primeira tradução completa da Bíblia para o inglês.

Contudo, a tradução de Wycliffe foi recebida com grande hostilidade pela Igreja Romana. A Igreja argumentava que a tradução da Bíblia para o vernáculo era perigosa, pois poderia levar a interpretações errôneas e heresias. Em 1408, o Sínodo de Oxford decretou que a tradução da Bíblia para o inglês ou qualquer outra língua vernácula sem autorização eclesiástica seria considerada um crime de heresia. Wycliffe, considerado um precursor dos movimentos de Reforma, foi postumamente declarado herege, e seus escritos foram condenados e queimados.

A Perseguição aos Tradutores

A resistência da Igreja Católica Romana às traduções bíblicas para as línguas modernas intensificou-se ao longo dos séculos XV e XVI, especialmente com o advento da imprensa, que facilitou a disseminação rápida e ampla de textos. Um exemplo notório dessa resistência foi a perseguição a William Tyndale, outro tradutor inglês que, no início do século XVI, dedicou-se à tradução da Bíblia para o inglês a partir dos textos originais em hebraico e grego.

Tyndale foi inspirado pelos ideais da Reforma Protestante e acreditava que a Palavra de Deus deveria ser acessível a todos os cristãos. Contudo, sua tradução foi fortemente condenada pela Igreja Romana. Em 1526, sua versão do Novo Testamento foi considerada herética e cópias foram queimadas em Londres. Perseguido pelas autoridades religiosas, Tyndale foi capturado em 1535, julgado por heresia e executado em 1536.

A resistência à tradução da Bíblia para as línguas vernáculas não se limitou à Inglaterra. Na Espanha, por exemplo, Francisco de Enzinas traduziu o Novo Testamento para o espanhol em 1543, mas foi preso pela Inquisição. Similarmente, em 1559, a Bíblia de Olivétan, a primeira tradução completa da Bíblia para o francês, foi proibida pela Igreja Católica.

 A Emergência das Sociedades Bíblicas

Apesar das perseguições, o desejo de traduzir e disseminar a Palavra de Deus para as línguas vernáculas continuou a crescer, impulsionado pela Reforma Protestante por iniciativa de Lutero e pelo crescente desejo de muitos cristãos de lerem as Escrituras em suas próprias línguas. Este movimento encontrou nova força no final do século XVIII e início do século XIX, com o surgimento das primeiras Sociedades Bíblicas, que tinham como missão a tradução, publicação e distribuição da Bíblia em todo o mundo.

A primeira dessas organizações, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (British and Foreign Bible Society, BFBS), foi fundada em 1804 em Londres. O objetivo principal da BFBS era tornar a Bíblia disponível "sem nota ou comentário" a todos que quisessem lê-la, independentemente de sua nacionalidade ou posição social. A BFBS desempenhou um papel crucial na tradução da Bíblia para diversas línguas ao redor do mundo, promovendo projetos de tradução em regiões tão diversas quanto a África, Ásia e América Latina.

Outra organização importante foi a Sociedade Bíblica Americana (American Bible Society, ABS), fundada em 1816 nos Estados Unidos. Inspirada pelo sucesso da BFBS, a ABS focou-se na distribuição da Bíblia no continente americano, bem como em apoiar traduções para línguas indígenas. Essas sociedades não só ajudaram a romper as barreiras linguísticas e culturais que limitavam o acesso à Bíblia, como também enfrentaram oposição da Igreja Católica em vários países onde o catolicismo era a religião dominante.

O Compromisso com a Distribuição da Palavra de Deus

As Sociedades Bíblicas não apenas se comprometeram com a tradução da Bíblia, mas também com sua distribuição em massa. No século XIX, essas organizações adotaram estratégias inovadoras, como a venda de Bíblias a preços subsidiados ou mesmo sua distribuição gratuita em comunidades carentes. A missão dessas sociedades era clara: garantir que ninguém fosse privado do acesso à Palavra de Deus por questões econômicas ou culturais.

A Igreja Católica Romana, inicialmente resistente às atividades dessas sociedades, eventualmente reconheceu a necessidade de participar no esforço de tornar a Bíblia mais acessível. Em 1943, o Papa Pio XII emitiu a encíclica Divino Afflante Spiritu, que encorajava os estudiosos católicos a se engajarem em traduções da Bíblia a partir dos textos originais. Esta mudança de postura representou uma reviravolta significativa na história da disseminação das Escrituras e abriu caminho para colaborações ecumênicas em projetos de tradução bíblica.

Conclusão

A história das primeiras traduções bíblicas para as línguas modernas é uma narrativa rica em perseverança, coragem e fé inabalável, marcada por uma resistência tenaz da Igreja Católica Romana e por um compromisso firme dos tradutores e das sociedades bíblicas em tornar a Palavra de Deus acessível a todos. Através de perseguições, execuções e censura, aqueles que acreditavam no direito de todos os cristãos de lerem a Bíblia em sua própria língua abriram caminho para a emergência de um movimento global que continua até hoje, garantindo que a Bíblia seja traduzida e distribuída em mais línguas do que qualquer outro livro na história.

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Referências Bibliográficas

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Divino Afflante Spiritu [Encíclica]. In: Acta Apostolicae Sedis, v. 35, p. 297-325, 1943.

Diogo J. Soares




DIOGO J. SOARES

Doutor (Ph.D.) em Novo Testamento pelo Seminário Bíblico de São Paulo/SP (FETSB); Mestre (M.A.) em Teologia e Estudos Bíblicos pela Faculdade Teológica Integrada e graduado (Th.B.) pelo Seminário Unido do Rio de Janeiro. Possuí Especialização em Ciências Bíblicas e Interpretação pelo Seminário Teológico Filadelfia/PR (SETEFI). Bacharel (B.A.) em História Antiga, Social e Comparada pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/MG). É teólogo, biblista, historiador e apologista cristão.

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